Arte Naif
A Arte naïf
é uma arte em estado bruto, sem lapidação, o que não significa, necessariamente,
que seja mal feita. Os
naïfs existem desde os primórdios da civilização, desde que o homem das
cavernas resolveu se expressar — as pinturas rupestres são um bom exemplo. O
cotidiano era registrado nas paredes das cavernas, em pedras, troncos de
árvore, no chão, e funcionava como registro de uma época. As estátuas
gigantescas da Ilha de Páscoa e os mosaicos bizantinos são — sem trocadilho —
pedras de toque do movimento naïf.
Então, o que é exatamente naif? É um termo em francês, que foi inventado lá no final do século 19, para rotular o trabalho de Henri Rousseau. A princípio, era um apelido, mas aos poucos, a nobreza francesa acabou adotando a técnica, e os filósofos franceses, tão na moda naquele século, trataram de massificar o novo estilo, mesmo sem os instrumentos do moderno mass media - os maçantes meios de comunicação de massa, enfim, a mídia.
O ícone da Arte Naif ou Arte Primitiva Moderna, é Henri Rousseau, pintor especialista em cores, considerados por muitos como precursor da corrente e principal artista. Henri não possuía educação geral, nem tampouco conhecimento em arte ou pintura. Ao levar a público, sua primeira obra denominada "Um dia de Carnaval", no Salão dos Independentes, o artista foi severamente criticado por ignorar princípios básicos de geometria e perspectiva. A obra retratava paisagens selvagens mescladas a um emaranhados de tramas, as quais remetem a sonhos e sentimentos do artista.
Embora de raízes primitivas, a arte ingênua não deve ser confundida com
primitivismo, que se ancora principalmente nos cultos religiosos de um povo
específico. Além disso, o artista primitivista tem mais controle racional do
que está fazendo. Já o naïf é muito mais infantil, mas essa inocência virtual
pode se manifestar em qualquer faixa etária — e vem para ficar, não some com um
eventual amadurecimento da alma. Jung dizia que a naïveté, a ingenuidade, era
“o último suspiro do inconsciente coletivo em vias de extinção”.
Assim, em contraposição com os acadêmicos, que pintariam com o cérebro, os ingênuos pintariam com a alma. E sempre escolhem temas regionais, lembranças da mais tenra infância, o futebol no campinho da várzea, o balão de São João, as procissões e as manifestações da fé popular em geral. Por essa razão a arte naïf é a pintura genuinamente brasileira por excelência, que tem como único pré-requisito ser autodidata.
*Patrícia Brito.
Entrevista.
Nascido no Rio Grande do Sul, o
batuque, religião afro-brasileira de culto aos Orixás, encontrou no solo
gaúcho um território receptivo, apesar do racismo e das importância social e
política das religiões cristãs, especialmente da Igreja Católica. Sinal disso
é que os deuses do batuque recebem polenta ou churrasco como oferendas, além
de caldos com erva-mate, e vestem até bombacha.
Mas, para o Prof. Dr. Norton
Figueiredo Corrêa, existe por trás disso uma enorme assimetria de poder
social e cultural, especialmente entre as religiões cristãs e as
afro-brasileiras. Em termos de cosmovisão, por exemplo, ele afirma que,
"enquanto a sexualidade é condenada no catolicismo (e no céu também não
existe sexo), os deuses afro-brasileiros namoram as deusas". E se o céu
católico-cristão parece algo eternamente inerte, as representações referentes
aos orixás "mostram-nos em movimento, guerreando, amando".
Nesta entrevista concedida à IHU
On-Line, por e-mail, Corrêa defende que justamente os brancos que ocupam as
posições de maior poder na sociedade gaúcha é que vão buscar o poder
simbólico que creditam aos sacerdotes da comunidade religiosa
afro-brasileira. Segundo ele, Borges de Medeiros (1863-1961), presidente do
Estado do Rio Grande do Sul por mais de 25 anos, era cliente de um famoso e
rico sacerdote africano. Por outro lado, Dom Vicente Scherer (1903-1996),
cardeal e ex-arcebispo de Porto Alegre, manteve, por muitos anos, um ataque
frontal às religiões afro, hoje manifestado pela Igreja Universal do Reino de
Deus.
Confira a entrevista.
Quais são as
origens do batuque? Poderia situá-las?
Norton Figueiredo
Corrêa – O batuque provavelmente surgiu em Rio Grande, na segunda metade do
século XIX. Um trabalho muito interessante de mestrado, de Jovani Scherer,
detectou uma considerável colônia de nagôs na cidade. É possível que uma
parte dos negros de origem jêje-nagô tivessem vindo da África, diretamente, e
uma parte de outros Estados brasileiros. São extraordinariamente grandes as
semelhanças entre o batuque e o xangô pernambucano. Do Rio Grande do Sul, o
batuque migrou para o Prata, hoje há muitas casas "de religião",
para usar um termo usado por seus integrantes, na Argentina, Uruguai, Paraguai
e outros países vizinhos.
Quais são as suas
peculiaridades e diferenças em relação a outras religiões afro-brasileiras?
Norton Figueiredo
Corrêa – Uma das peculiaridades do batuque – mas comum a qualquer religião – é
a adaptação ao contexto regional. No caso do batuque, Oxum, a deusa das águas
doces, tem como oferenda a polenta, influência da colônia italiana. O Bará,
divindade das encruzilhadas e caminhos, recebe batatas inglesas assadas,
sendo que a batata, embora americana, foi popularizada pela colônia alemã. A
veste ritual masculina é a bombacha e o churrasco é o alimento preferido de
Ogum, o deus da guerra e das artes manuais. E os eguns, os espíritos dos
mortos, recebem uma espécie de caldo, o mieró de egum, ao qual alguns templos
adicionam erva-mate. Mas há diferenças variadas entre o batuque e outras
religiões, especialmente as de influência banto, como a umbanda e o candomblé
de caboclo baiano.
Qual a
importância do batuque na construção da sociabilidade e da religiosidade do
gaúcho?
Norton Figueiredo
Corrêa – Podemos falar na sociabilidade interna à religião e externa a ela.
Internamente, entendo que o batuque foi um espaço simbólico criado pelos
negros urbanos com a função de praticarem a sociabilidade, de se
auto-protegerem contra a repressão da sociedade branca e construírem uma
identidade própria, grupal. Com o tempo, os brancos, especialmente das
classes baixas, começam a ingressar na religião, e muitos deles, mesmo no
passado, assumiram a condição de pais e mães-de-santo e se tornaram muito famosos
e respeitados dentro e fora da comunidade. Atualmente, o número de brancos
aumentou, inclusive descendentes de italianos e alemães. O que ocorre com
eles é que a conversão às religiões afro, mas mais especialmente ao batuque,
implica na aquisição de uma visão de mundo muito específica, que se opõe
diametralmente à cristã. São brancos na pele, mas negros na cabeça.
A expressão "sociedade
gaúcha" é complicada, porque os religiosos afro-brasileiros pertencem a
ela. Se falarmos dos não filiados às religiões afro, a grande influência
delas se traduz pelo fato de que os não filiados acreditam firmemente no
poder simbólico que elas possuem. Quando falei em espaço criado, trata-se, na
verdade, de um espaço negociado entre a comunidade religiosa e a sociedade envolvente.
Há dois pontos a considerar. Os brancos ocupam as posições de maior poder na
sociedade gaúcha, e esta, em caráter oficial, apenas tolera as religiões
afro. Mas são justamente essas pessoas, individualmente, que vão buscar o
poder simbólico que creditam aos sacerdotes da comunidade religiosa
afro-brasileira.
A classe alta
gaúcha e o batuque
Observei tal fenômeno, que é muito
recorrente, durante os 20 anos de pesquisa sobre o batuque. Ouvi, de pais e
mães-de-santo, descrições muito precisas e detalhadas de escritórios,
consultórios, indústrias, lojas e empresas de grande porte, para onde foram
levados por seus proprietários para fazerem serviços religiosos. Assinale-se
que o detalhamento excedia os locais frequentados pela clientela ou público,
estendendo-se, por exemplo, a almoxarifados, salas reservadas etc.
Além disso, muitos dos nomes dos
respectivos proprietários eram de pessoas de grande visibilidade na sociedade
gaúcha. Diz-se que Borges de Medeiros [(1863-1961), presidente do Estado do
Rio Grande do Sul por mais de 25 anos], nos anos 1930, era cliente do
Príncipe, um famoso e rico sacerdote africano que veio morar em Porto Alegre.
Testemunhas afirmam que ele o atendia – assim como a outros políticos – a
portas fechadas, em seu templo. E que teria "sentado" (isto é,
entronizado) um Bará, no Palácio Piratini.
O segundo ponto a ser considerado é
que é muito difícil que uma família pobre, no Rio Grande do Sul, mesmo
branca, que não tenha vários membros iniciados ou frequentadores de religiões
afro. Uma grande quantidade de pessoas, além disso, já jogou búzios e sabe
quem são seus orixás ou entidades, porque, na visão de mundo batuqueira, cada
indivíduo, não importa se iniciado ou não, mesmo os de outros locais do
mundo, são filhos espirituais de dois orixás, um que comanda a cabeça, e
outro, o corpo.
Repressão
católico-cristã
É um fenômeno semelhante ao que
ocorre na Bahia, mas com a diferença de que no Rio Grande do Sul não existe,
como lá, a enorme badalação (muito para fins turísticos, esclareça-se) que é
feita sobre o candomblé e seus orixás. O número de templos afro-gaúchos,
estimado em cerca de 30 mil, supera os do Rio de Janeiro e os da Bahia. Outro
indicador – a abundância de despachos em rios, cachoeiras, ruas, praias,
cemitérios, matas (o que, inclusive, ensejou tentativas de regulamentação
através de leis) – é uma característica local, não observável nos outros
estados referidos. A presença e pujança das religiões afro-gaúchas é algo
extraordinário em se tratando de Brasil. Mas, pode-se perguntar, qual o
motivo de tanta vitalidade justamente num Estado considerado o mais branco da
Federação? A resposta, na minha opinião, remete para a questão do racismo no
Rio Grande do Sul, que é muito forte, além da grande presença e
influência política, social e simbólica da Igreja Católica, que até bem
recentemente foi a grande responsável pela repressão a estas religiões.
Uma figura de muita projeção, como Dom Vicente Scherer [(1903-1996), arcebispo de Porto Alegre entre 1946 e 1981. Em 1969, foi designado cardeal], manteve, por muitos anos, uma coluna jornalística, além de um programa de rádio, nos quais atacava violentamente tais religiões. Atualmente, os ataques partem da [Igreja] Universal do Reino de Deus (IURD), também uma instituição cristã. Aí voltamos à questão do espaço de sociabilidade que os negros criaram, uma resposta a um ambiente hostil.
Não é demais acrescentar que, de
certo modo, a arma simbólica potencial representada pela feitiçaria – ou
seja, a possibilidade de manobrar com forças sobrenaturais perigosas,
conhecidas apenas pelos integrantes da comunidade religiosa – ocupa um ponto
importante nas relações sociais no Rio Grande do Sul: brancos e negros
acreditam em tais poderes, mas ambos concordam que são os negros que detêm
tais poderes. Ou seja, o feitiço, como possibilidade, atua também como um
moderador do poder branco. A questão também se projeta no caso de Exu.
Divindade africana dos caminhos e encruzilhadas, foi demonizado pelo
cristianismo. Mas o feitiço virou contra o feiticeiro: ao associar os
religiosos negros ao "mal", deu-lhes, de bandeja, a condição de
serem proprietários deste e, por conseguinte, o poder de manejar com ele. Os
muito humanos desejos de vingança, os sentimentos como raiva e ódio
impotentes encontram aí um canal de expressão e liberação. Alguém,
pergunta-se, pediria a uma divindade cristã que aniquilasse com a amante do
marido, por exemplo?
E quais são as
influências do batuque na culinária, também ritual?
Norton Figueiredo
Corrêa – Muito pequenas, porque é algo que permanece no intra-muros dos
templos. Um dos poucos alimentos rituais de divindades do batuque, o acarajé,
era antigamente vendido nas ruas. Mas é um costume que desapareceu no Rio
Grande do Sul. A culinária rio-grandense de origem africana veio dos povos
banto, da região de Angola, de Moçambique e do antigo Congo, como o quibebe,
um pirão de abóbora.
O alimento, por ser algo
indispensável à vida humana, ocupa um lugar importantíssimo nos rituais de
boa parte das religiões. No catolicismo, a consagração do pão-hóstia, que
representa o corpo de Cristo, e o vinho, o sangue, se constitui no ápice da
missa. A expressão "o pão nosso de cada dia..." compõe uma das
orações de maior destaque. Nas religiões afro-brasileiras, a principal
oferenda são alimentos: de origem animal, como a carne e certos órgãos, ou
vegetais, como a polenta e o acarajé, além de bolos, doces.
Como se dá o
diálogo inter-religioso entre o batuque e as demais religiões em nosso
Estado?
Norton Figueiredo
Corrêa – Quanto à [Igreja] Universal do Reino de Deus, como disse, é de franco
ataque por parte. No meu entender, a incrível tolerância do poder público
brasileiro face aos ataques, discriminação e desmoralização que a IURD
promove em relação às religiões afro é um exemplo muito ilustrativo,
primeiro, do status que elas ocupam na sociedade brasileira, que acompanha o
de seus integrantes, os negros, cidadãos de segunda classe. E segundo, do
racismo. Se os ataques fossem à religião católica, a questão seria muito
diferente, como caso da imagem da santa, chutada pelo pastor.
Como ex-aluno de
uma instituição jesuíta, como você percebe o diálogo entre as religiões
afro-brasileiras e o catolicismo?
Norton Figueiredo
Corrêa – Pouco expressivo, especialmente porque são duas visões de mundo opostas
e inconciliáveis. Tal constatação me surgiu com base no conhecimento da
cosmovisão cristã-católica, que aprendi em família (mas principalmente nas
leituras da Bíblia e do catecismo, nas aulas de religião, no velho Colégio
Anchieta) e das longas observações que fiz sobre o batuque. A visão católica,
desenvolvida por Santo Agostinho através dos escritos de Platão, prega que o
destino da alma está relacionado ao que o indivíduo faz em vida. É o que
batizei de "efeito-gangorra": se conceder tudo o que o corpo quer
(em última análise, o prazer), a alma vai para inferno. Ao contrário,
se se reprimem os desejos do corpo, vai para o céu. Em última análise, a dor
redime (a maioria dos santos foram para o céu porque sofreram), e o prazer
condena.
Na visão de mundo religiosa
afro-brasileira, o destino da alma independe das atitudes do indivíduo em
vida: fica vagando, vai para os cemitérios ou se instala numa pequena
casinha, o balé, existente nos templos. Como não existe o efeito-gangorra, o
prazer não é condenado; pelo contrário, a vida é para ser bem vivida, em
todos os sentidos. Os respectivos panteões ilustram tais realidades: por
exemplo, enquanto a sexualidade é condenada no catolicismo (e no céu
também não existe sexo), os deuses afro-brasileiros namoram as deusas. As
representações sobre o céu remetem à imobilidade (como a missa), mas as
referentes aos orixás mostram-nos em movimento: cumprindo certas atividades,
guerreando, amando, movimentando-se por certos lugares que lhes são
consagrados. Mas o que mais gostam verdadeiramente é de dançar. Para isso,
tomam conta dos corpos e mentes de seus filhos espirituais humanos, dançando
através deles nas solenidades religiosas realizadas em sua homenagem. Por
isso, afirmo que são cosmovisões muito diversas, opostas.
Graças a tudo isso é que, no meu
entender, não tem sentido o que as igrejas cristãs chamam de evangelização,
pois não passa pela cabeça de um religioso afro-brasileiro a ideia de que se
deve, como Cristo, optar pela dor e pelo sacrifício para salvar a própria
alma. Tais questões, igualmente, é que impedem, também em minha opinião,
a efetivação de um verdadeiro ecumenismo, na mais ampla acepção do
termo. A não ser que, antes de tudo, seja reconhecido que há uma enorme
assimetria de poder, social e culturalmente falando, entre as religiões
cristãs – e, no caso, a católica – e as afro-brasileiras. E, segundo, que o
termo se traduza pelo mais amplo, total e irrestrito respeito às diferenças e
à visão de mundo de cada um.
Quais são os
conflitos intra e extrarreligiosos do batuque? Poderia exemplificar?
Norton Figueiredo
Corrêa – Os conflitos internos, entre integrantes do mesmo templo e entre os
templos, devem-se, em boa parte, à estrutura de sua organização: os templos
são unidades hierarquizadas e que permitem a ascensão do fiel aos cargos e
posições de prestígio e mando, que têm como ápice o sacerdócio e a abertura
de um templo para si. A situação é semelhante entre os templos, pois há uma
certa hierarquia e possibilidade de ascensão em matéria de prestígio, na
comunidade, trazida também pela visibilidade interna, mas que podem ser
potenciadas pela externa, junto à sociedade envolvente.
Quais são os
principais desafios para o negro hoje, dentro do tipo de sociedade em
que vivemos?
Norton Figueiredo
Corrêa – O principal desafio para o negro, hoje, é batalhar, individual e
coletivamente, para superar os obstáculos, especialmente o racismo e a
discriminação racial que lhe são postos pela sociedade.
|
||
Autor: Moisés Sbardelotto e
Márcia Junges
|
Nenhum comentário:
Postar um comentário